Coimbra está a tornar-se a capital portuguesa da Saúde. Na linha da frente, um centro hospitalar público que se aventura num projeto de internacionalização. E até já há uma parceria com o maior seguro de saúde público alemão. Seguem-se os ingleses.
Na linha da frente, um centro hospitalar público que se aventura num projeto de internacionalização. E até já há uma parceria com o maior seguro de saúde público alemão. Seguem-se os ingleses. O turismo de saúde é uma das apostas e a cirurgia cardiotorácica, liderada por Manuel Antunes, uma das áreas a explorar. Está tudo a ser preparado para receber doentes de toda a Europa.
Mesmo com todos calados, o silêncio nunca é total.
A ausência de som não existe. Na sala de operações, o burburinho dos ventiladores que a isolam do exterior e mantêm a temperatura uniforme é permanente. Outros ruídos juntam-se ao coro. Os bips dos aparelhos que vigiam o doente, inconsciente, na mesa de operações, dão conta de sinais que medem a vitalidade de um organismo temporariamente inerte, mas vivo - a frequência cardíaca, a pressão arterial e a temperatura. Um som mais arrastado sobressai. É a máquina coração-pulmão que permite aos cirurgiões trabalharem no interior do peito do paciente sem o matar.
Para se operar um coração, é preciso pará--lo primeiro. É nesse momento que a máquina entra em ação, substituindo-o. As suas bombas drenam o sangue que estaria a chegar ao coração. Ali é oxigenado e, de seguida, novamente bombeado de volta ao corpo, irrigando todos os órgãos e tecidos.
O que vemos é pura rotina no bloco operatório do Centro de Cirurgia Cardiotorácica, uma das áreas que o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) quer internacionalizar. Através de um vidro, vê-se o que se passa na sala ao lado, onde o diretor do serviço, Manuel Antunes, ainda intervém num doente. Mal se lhe vê o rosto por causa da máscara e lupas binoculares nos olhos.
São 10 e 13 e, deste lado, a equipa de nove pessoas, entre cirurgiões, anestesistas, enfermeiros e perfusionistas já preparou o paciente, um homem de 68 anos, que deu entrada no bloco às 7 e 41, para três procedimentos complicados: um enxerto de coronária, a substituição da válvula aórtica e da válvula ascendente.
"Uma cirurgia relativamente complexa. Mas de rotina. Com esta complexidade, fazemos uma por semana ou a cada duas semanas", comentará, mais tarde, Manuel Antunes.
O paciente está pronto para a chamada "parte nobre da operação" o que é também sinónimo de parte complicada. Aquela que o chefe faz questão de ser ele próprio a executar. Algum imprevisto fê-lo demorar-se mais uns instantes do outro lado do vidro.
Terminada essa intervenção, Antunes entra na sala cujas portas franqueou à VISÃO, numa manhã de Abril. Como num navio de grande porte, durante a atracagem, cada membro da equipa está no seu lugar e sabe o que fazer a cada momento. Quando a engrenagem se encontra bem oleada, não são necessárias muitas palavras nem há gestos supérfluos que podem representar um risco para a missão.
A enfermeira instrumentista antecipa-se, muitas vezes, passando ao cirurgião os instrumentos antes de ele os solicitar. E se o médico abre a boca para os pedir, acrescenta sempre "se faz favor", mesmo quando há um tom irritado na voz. Os gestos são seguros e precisos.
Vêem-se mãos em luvas descartáveis finas e gazes ensanguentadas. Pinças, bisturis e outros instrumentos dispostos num tabuleiro ao lado do doente. Numa tigela cromada, o pedaço de veia safena retirado da perna que vai servir para revascularizar uma coronária parcialmente obstruída.
Do paciente, coberto por panos verdes esterilizados, só se vê o peito depilado. Aberto a serrote e tingido de castanho pelo desinfetante de iodopovidona (vulgo Betadine). Estranhamente, impressiona menos que as figuras anatómicas de cera do século XVIII do museu La Specola (Florença).
A máquina coração-pulmão não funciona de acordo com o desejado. "Quero o ventrículo a aspirar no máximo da capacidade", reclama Manuel Antunes. O diretor do serviço é exigente. Tem de sê-lo. Quando se segura literalmente a vida de outra pessoa nas mãos, não basta a hipótese de erro ser ínfima. Tem de ser nula.